Anencefalia: Vida ou Morte?

A partir da terceira semana de desenvolvimento embrionário inicia a formação do que futuramente será o Sistema Nervoso Central (SNC), através de um processo denominado neurulação. Um dos eventos importantes neste processo é o fechamento das pregas neurais, constituindo uma estrutura tubular, o tubo neural.

Várias anomalias podem estar associadas a erros na embriogênese do SNC, dentre elas destaca-se a anencefalia que corresponde ao distúrbio mais severo. O termo anencefalia (an, falta + enkephalos, encéfalo) é empregado de maneira errada, uma vez que parte do SNC correspondente ao tronco cerebral ainda permanece.

A paulista Cacilda Galante Ferreira, 37 anos, ao realizar exames pré-natais, recebeu a noticia de sua médica que sua filha tinha anencefalia. Mesmo sabendo que sua filha teria pouco tempo de vida fora do ambiente intra-uterino, Cacilda optou por continuar a gestação. Marcela nasceu com anencefalia e surpreendeu o mundo, sobrevivendo por quase dois anos. Mesmo não tendo parte do seu cérebro, conseguia respirar, engolir e movimentar seus membros. De acordo com o neurocirurgião infantil Sérgio Cavalheiro (UNIFESP): ”a menina possuía o tronco cerebral que se torna responsável pelo tato, olfato e movimento dos membros, por outro lado ela não desenvolveu o lado intelectual porque não possuía o córtex cerebral”.


Cacilda Galante e a filha Marcela

Para sobreviver, Marcela usava um capacete de oxigênio o qual raramente ficava sem ele e era alimentada por sonda a base de líquidos, chegando a pesar 15 Kg e apresentar estatura normal de uma criança da sua idade. Em 2008, após um ano e oito meses de vida, Marcela morreu devido a uma parada respiratória em decorrência de uma pneumonia provocada por aspiração de leite.

No Brasil, o aborto é autorizado por lei somente quando a mulher é vitima de estupro ou quando a gestação é considerada um risco à vida da mãe. Apesar de a anencefalia ser irreversível e seu diagnóstico 100% preciso, a lei brasileira não permite a interrupção da gravidez nesta situação. Em julho de 2004, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu uma liminar garantindo o direito ao aborto em casos de anencefalia comprovada. Três meses depois, a liminar foi derrubada pelo próprio STF, por 7 votos contra 4.

Para discutir essa questão com a sociedade civil, o Grupo de Estudos sobre Aborto (GEA), em parceria com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizará no dia 27 de maio de 2010, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília, o “Seminário sobre anencefalia”. O pano de fundo da discussão será o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, que deverá ser votada ainda este ano pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Impetrada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), a ADPF nº 54 visa corrigir essa omissão da lei, dando à mulher o direito de escolher entre interromper ou não a gravidez quando a anencefalia for diagnosticada.

Discussão sobre o tema em projetos de lei no Congresso Nacional

“O seminário pretende trazer à baila aspectos científicos, médicos e jurídicos sobre a questão, fornecendo um parâmetro confiável para o julgamento da ADPF nº 54 e esclarecendo corretamente a sociedade”, afirma o obstetra e geneticista Thomaz Gollop, um dos integrantes da comissão de organização do evento. Segundo ele, a incidência da anencefalia é alta no Brasil: 1:700 nascidos vivos. Além disso, há uma comprovada associação entre a anencefalia fetal e a frequência de complicações na gravidez, o que aumenta o risco de morbi-mortalidade da mãe. Isso sem falar no sofrimento psíquico da mãe.

Ophir Cavalcanti (presidente nacional da OAB) debate a questão dos anencéfalos.

Apesar das evidências em favor do direito de escolha da mulher, todas as tentativas de mudar a legislação (projetos de lei e até uma liminar) foram em vão. Hoje, se uma mulher quiser interromper a gravidez de um feto anencefálico, ela precisa recorrer à justiça, cuja decisão pode ser favorável ou não, conforme a interpretação do juiz. “Confunde-se antecipação terapêutica do parto com aborto”, diz Gollop, lembrando que esta será uma das questões jurídicas que serão discutidas no evento. Segundo Ophir Cavalcanti, a OAB já possui posicionamento firmado no sentido de que a interrupção da gravidez de feto anencefálico (sem cérebro) não é considerada prática abortiva.